1.
Quando eu era pequena, a minha mãe tinha uma cigana. Aparecia duas vezes por mês, às vezes três. Sabíamos logo que era ela quem chegava. Usava sempre o mesmo código para se anunciar: três toques na campainha. Pianissimo, forte, fortissimo. Subia rapidamente as escadas até ao segundo andar e, centrando-se no tapete empoeirado da entrada, estendia um saco plástico descolorado e quebradiço. A postura de fio de prumo, os braços ligeiramente abertos, o sorriso branco, os olhos serenos contrariavam, em tudo, a sua intenção. Ninguém diria que vinha pedir, antes oferecer. Não esperava grande coisa, a cigana. E a minha mãe não lhe dava grande coisa. Umas moedas para um litro de leite, um pedaço de carne de corte barato, um sabão para a roupa, meio pacote de arroz ou de massa. Se acontecia os meninos da cigana andarem ranhosos ou com a garganta a picar, a minha mãe juntava mais umas moedas para ajudar na conta da farmácia ou dispensava, caso tivesse, uns supositórios ou um resto de xarope. Para o saco iam também alguns frescos, que começavam a padecer do mal de frigorífico, mas que, naquela época, se aproveitavam mesmo assim. Umas cenouras amolecidas, umas frutas enrugadas, umas folhas a perder o viço, tudo a caminho de uma velhice que hoje não conhecemos porque os químicos não permitem a podridão natural das coisas. Não éramos ricos nem nada que se parecesse com fartura. Uns remediados, talvez, como se dizia naquela época em que as pessoas ainda não tinham sido carimbadas com a letra de uma classe social.
A minha mãe e a cigana não se diziam amigas, nem sei se podiam se o quisessem dizer, mas tinham uma familiaridade que, mesmo aos olhos de uma criança atenta às mudanças do mundo, era estranha. Tratavam-se por tu com uma informalidade sem reverências nem complicações. Ana Maria para cá, o nome da minha mãe, Ana Rosa para lá, o nome da cigana. Os meninos como andam, elas são piores do que eles, os cabelos brancos que uns e outros nos irão dar é certo e sabido. Falavam do preço exagerado do pão, da dificuldade de arranjar leite decente e que não em pó, da praga que ameaçava as batatas, da falta de bacalhau que se previa para o Natal, da loucura dos homens pelo disputado campeonato nacional de futebol e de outros assuntos que marcavam aqueles anos finais da década de 70 do século passado. Pareciam estar na pastelaria, descontraídas e felizes, como via as mães de algumas amigas, comendo gulosamente bolos com um garfinho e gesticulando numa proximidade íntima. A cigana não passava do tapete, porém. A minha mãe permanecia na soleira da porta. Eram visitas curtas, mas pareciam-me uma eternidade e ficava fascinada, escondida dos olhares de ambas, a escutar aquela conversa fácil. A despedida, que acontecia quando algum ruído subia ou descia pelas escadas, era sempre a mesma numa hipnótica cantilena a duas vozes.
- Tens ido à missa?
- Claro que não. E tu?
- Deus me livre.
- Então não nos encontramos por lá.
Sorriam, penso que satisfeitas por partilharem aquele código misterioso, davam as mãos num cumprimento mudo de boca mas bem conversado de olhar, e iam cada uma à sua vida. A cigana pegando no saco e descendo, ágil, os degraus. A minha mãe regressando aos seus afazeres, que tanto podiam ser os cozinhados, a costura ou a leitura do Diário de Lisboa do dia anterior.
2.
Passei anos a perguntar à minha mãe quem era aquela cigana. Quando Ana Rosa aparecia à nossa porta, mas também sempre que tinha uma oportunidade, mesmo que a forçasse. Bastava irmos ao mercado de levante, onde várias famílias ciganas vendiam atoalhados, roupas, sapatos e quinquilharias, e largava a questão:
- Mãe, a tua cigana não vende aqui. Donde a conheces?
Ou se alguém com uma figura levemente cigana calhava a passar por nós na ruas da vila soltava a pergunta:
- Mãe, olha um cigano! E a tua cigana, onde mora?
Mais tarde, quando mudei para a escola nova, sabemos hoje um ninho envenenado pelo amianto, e passei a ter um colega cigano, arranjava sempre uma história para, na chegada a casa, expor a minha curiosidade:
- Mãe, não imaginas o que aconteceu com o Rodrigo, o nosso cigano. E a tua cigana? Nunca me disseste quem ela é.
Nunca tive sorte. Invariavelmente, a minha mãe respondia-me com aquele seu ar resoluto de não há cá mais conversas:
- Já te disse, menina, é uma cigana que eu conheço.
Às vezes, uma ou outra vizinha, daquelas que, como a minha mãe, estavam em casa a criar os filhos pequenos e davam por todos os movimentos nas escadas do prédio, interceptava-me no átrio ou num patamar e pressionava-me sobre a cigana. Como nada sabia, pouco podia dizer. No entanto, o tom de urgência daqueles inquéritos, e a falta de pudor daquelas mulheres em encostar repetidamente uma miúda à parede, faziam aumentar a minha já desmedida curiosidade.
- Quem é ela? Conta lá.
- É a cigana da minha mãe.
- Que é uma cigana, já se sabe. O que não se sabe é o que ela vem cá fazer tantas vezes. Vem fazer o quê, a cigana?
- Não sei.
- Sabes, sim. Puxa pela cabeça.
- Não sei.
- Vem ler a sina da tua mãe?
- Não.
- Então vem fazer o quê, miúda?
- Acho que vem para conversar.
- Conversar? Não queres contar, não contes. Criança teimosa.
- Mas é só isso. A sério.
- Conversar com uma cigana. A tua mãe é uma mulher com pouco juízo.
Eu não achava que faltasse juízo à minha mãe, mas compreendia a necessidade daquelas mulheres descobrirem mais sobre Ana Rosa. A cigana era tão diferentes delas. Para começar, era cigana. E não escutava eu, tantas vezes pelas ruas do bairro, aquelas mulheres a amedrontar os filhos, delas e das outras, com a história do cigano do saco, o velho barbudo de falas mansas que aparecia para levar as crianças que se portavam mal e delas fazer uma barra de sabão? A cigana da minha mãe contrariava-as. Não emanava a escuridão dos ditados. Tinha cabelos cor de castanha, muito compridos, brilhantes e imaculadamente escovados, que usava soltos, sem ganchos nem travessas, caindo pelas costas. Não era uma cigana trigueira, a sua pele era antes de um moreno pálido e os olhos esverdeados. Ana Rosa era uma mulher alta, mesmo posta nos chinelos ou nos sapatos rasos de homem com que se apresentava. As suas saias compridas, tocando os tornozelos, eram cortadas a direito, o que lhe dava uma silhueta esguia, e com os seus movimentos ágeis, quase felina. E mesmo de saco plástico velho na mão a estalar dificuldades, a voz de Ana Rosa soava sempre animada. De certa maneira, tudo nela era, hoje sei escolher bem a palavra, dignidade. E também, acho até que era isto que mais melindrava aquelas mulheres, confiança. Não trazia Ana Rosa sempre enfiadas nas orelhas umas vistosas argolas de ouro e num dos pulsos três tilintantes escravas douradas numa época em que os assaltos às mulheres, na vila, as faziam desistir de ostentar quase todo o tipo de ornamentos?
A verdade, porém, é que as perguntas feitas pelas vizinhas eram, afinal, as minhas perguntas. Donde vinha a cigana? O que fazia ela ali, rindo, cabeça atirada para trás, boca aberta, dentes muito brancos, no tapete da minha mãe?
Até agora, tantas décadas passadas, não consegui arrancar-lhe uma resposta. Aqui sentada a escrever à mão, num velho bloco Castelo que encontrei na sua sempre organizada gaveta das contas, sinto-me tomada pela urgência de registar este mistério. Penso nos meus fios de cabelo branco a multiplicarem-se lubricamente da noite para o dia, surpreendendo-me pela manhã como antigamente as borbulhas. Passou tanto tempo. Passou tanta vida. Talvez seja hoje. Não será o melhor dos dias, mas nunca existiu, ou existirá, outro melhor. Desprevenida pela minha desfaçatez talvez solte o segredo. O máximo que consegui numa certa tarde em que a rondava a melancolia foi pouco, menos do que uma migalha.
- Donde se conhecem as pessoas? Da vida. A vida traz-nos algumas para sempre e outras que vêm e vão como as estações. Um dia vais perceber, filha. E não há mais nada a dizer sobre a Ana Rosa. É uma cigana que eu conheço.
Até à adolescência, altura em que outros mistérios seduziram de rompante a minha curiosidade, também não me cansei de questionar o meu pai. A maioria das vezes, nada dizia. Limitava-se a respirar fundo, encolher os ombros e a abrir os braços, palmas das mãos viradas para cima, demonstrando a sua ignorância. Outras, não escondia o aborrecimento que o assunto lhe causava e resmungava:
- Outra vez a mesma tecla? Se conseguires que a tua mãe te diga, contas ao pai. A cigana chegou antes de mim, já sabes. É um mistério.
- Mas nunca quiseste saber, pai?
- Quis. Então não quis? Pois quis.
Ficava a olhá-lo, à espera que desta vez desenvolvesse a resposta, mas ele enfiava a cabeça no Diário de Lisboa e dali já não saía. Como o meu pai, também eu acabei por me render, em casa, ao mistério da cigana. Durante uma mão cheia de anos, Ana Rosa fez parte das visitas mensais, como o homem que vinha contar a luz, o rapaz que entregava a bilha do gás ou o velhote que trazia a criação caseira já morta e preparada para canjas e cabidelas. Só que com a cigana a minha mãe não punha aquele seu ar de quem está a aviar um medicamento e a memorizar as indicações de toma. Permanecia na soleira da porta, sim, mas parecia leve, jovem, rindo para, no fim da visita, afinar a voz para o habitual e desconcertante dueto de despedida:
- Tens ido à missa?
- Claro que não. E tu?
- Deus me livre.
- Então não nos encontramos por lá.
Não sei quem é a Cristina nem mesmo como vim aqui parar… é um mistério como a Ana Rosa ! Segui um link por acaso. Gosto muito da sua/tua escrita. Parabéns !
Obrigada, Carolina. Pela leitura, pelas tuas palavras e pela valente dose de motivação! A história vai saindo devagarinho, portanto não te apresses que chegarás muito a tempo... até porque o final ainda tarda ;)