Primeiro foste um demónio capaz de tragar um menino inteiro com a tua boca escancarada de dentes afiados. Um scroll depois já eras uma espécie de santo abissal, trazendo-nos uma mensagem críptica das profundezas. Não te admires que a Primavera te ponha estampado, com olhos grandes e doces, em t-shirts para gente que avia cocktails em sunsets. Ou que barracas à beira de estradas para as praias te transformem, sem lucrares quaisquer direitos autorais para a descendência, no sucesso de Verão em bóias e atoalhados. De tornares-te um peluche, um penduricalho para o carro ou uma tatuagem para jovens místicos também não escaparás.
Desculpa-nos peixe-diabo negro. Somos seres humanos e não sabemos o que fazemos.
Vivemos entre o zoom in e zoom out, numa tentativa permanente de fuga ao tamanho da nossa realidade. Contamos histórias a nós mesmos para conseguirmos estar no mistério dos dias e nos consolarmos por não sermos o centro e a razão disto tudo. Por andarmos por aqui apenas, mais uns entre o céu e a terra. A nascer e morrer. Sem uma função ou uma finalidade autenticamente magnânimas.
É-nos difícil encarar esta existência destituída de um sentido, sabes? Por isso inventamos, a todo o momento, narrativas que disfarcem o nosso egocentrismo.
Quando percebemos que nunca poderias engolir um cachalote por seres diminuto, metade de um telemóvel, essa nova medida universal, e ainda por cima uma fêmea, recebeste de imediato a tua fábula.
Nela, como qualquer ser humano, fugiste da tenebrosa escuridão para encontrar a milagrosa luz, mesmo que nela te esperasse apenas a morte. Fostes, não por acaso, imortalizado como um velho cowboy a rumares ao pôr-do-sol. Um solitário em busca de liberdade. Morrer assim vale a pena, dizem as nossas histórias. Portanto, morreste bem. E ficámos todos mais descansados.
No filme de animação que vais originar, vão suavizar-te os traços para tornar-te mais atraente, dar-te uma família (não sei como explicarão às crianças a tua relação com os vários machos que em ti habitam, fundidos na tua carne e partilhando o teu sangue), terás amigos generosos e um tortuoso arqui-inimigo, talvez outra espécie, como tu, das profundezas oceânicas. Provavelmente, terás um sarcástico sentido de humor, acenderás involuntariamente a tua lanterna-isco quando ficares nervoso e cantarás duas canções, uma alegre com bom refrão e outra tão triste como um fado antigo. Viverás, de certeza, uma grande aventura. Digna de Hollywood.
A verdadeira, porém, a que te trouxe até nós, para acabares nas mãos de um mergulhador, já não conta.
Na nossa fábula, demos-te umas emocionadas lágrimas para a tua última visão do mundo, como se os teus olhos não fossem praticamente cegos, mas, nota, não te oferecemos a fala. Sabe-se lá o que poderias dizer-nos sobre os verdadeiros motivos da tua viagem. Sabe-se lá o que poderias dizer-nos sobre o mundo. Ou, pior, sobre nós.
Sabes, peixe-diabo negro, o ser humano gosta de perguntas, mas não está disponível para escutar algumas respostas. E por vezes, muitas, demasiadas, olhando-se ao espelho, vê ainda em si, garanto-te, traços vorazes e repugnantes mais pré-históricos do que os teus.
Fugiste de nós, Melanocetus johnsonii. Mas não escapaste ao circo.